“Cristianismo Cultural”? Uma Perspetiva Crítica

Um texto de David Raimundo, Secretário-Executivo do GBU.

Richard Dawkins muda de perspetiva… em parte!

O biólogo e autor britânico Richard Dawkins, mundialmente famoso pelo seu ateísmo militante, afirmado ao longo dos anos em inúmeros livros e entrevistas, surpreende-nos agora ao dizer que se considera um “cristão cultural”. Esta recente declaração representa uma alteração na perspetiva de Dawkins relativamente à religião: anteriormente manifestava-se contra a religião per se, sem distinguir as diferentes religiões, acusando toda e qualquer expressão religiosa de ser divisiva, perigosa e contrária à racionalidade; agora, mergulhado na sua própria cruzada intelectual contra o Islamismo, Dawkins concede que “se tivesse que escolher entre o cristianismo e o islamismo escolheria sempre o cristianismo,” pois sente-se “em casa” com o ethos do cristianismo. 

Importa realçar que Dawkins continua a desprezar a fé cristã, afirmando que há uma diferença muito significativa entre um cristão crente e um cristão cultural. Continua a descrever os dogmas da fé como coisas sem nexo (lit. “nonsense), com um tom que deixa transparecer a mesma militância acérrima que caracterizou a sua obra de apologética ateísta (patente, por exemplo, n’A Desilusão de Deus). 

Richard Dawkins não está sozinho!

Estas declarações do autor britânico são o exemplo mais recente e inesperado de entre várias declarações proferidas por intelectuais que, sendo ateus ou pelo menos agnósticos, têm de algum modo reconhecido a inegável impressão digital do cristianismo nas sociedades ocidentais. Essa impressão digital pode ser detetada no respeito pelos direitos humanos, nos valores democráticos, no respeito pela liberdade do outro, nas redes formais e informais de prestação de cuidados aos mais frágeis, etc. Como afirma um desses intelectuais, o historiador Tom Holland, autor do best-seller Domínio:

“Que cada ser humano possuísse igual dignidade não era, nem remotamente, uma verdade autoevidente. Um cidadão romano rir-se-ia desta ideia… A origem do princípio [de que todos possuem valor em si mesmos] não reside na Revolução Francesa, nem na Declaração da Independência Americana, nem no Iluminismo, mas—tal como Nietzsche tinha afirmado de forma tão desdenhosa—essa origem encontra-se na Bíblia.”1

O comentador Douglas Murray, autor da obra A Insanidade das Massas, constitui outro exemplo proveniente da sociedade britânica, uma sociedade onde esta tendência parece ter algum ímpeto. Um outro caso é o da autora e ativista Ayaan Hirsi Ali, também ela anteriormente conhecida como militante ateísta (havendo quatro reconhecidos “cavaleiros do ateísmo” naquilo que em tempos se chamou Novo Ateísmo, Hirsi Ali era vista como a “quinta cavaleira”); neste caso há, contudo, uma alteração mais profunda e significativa, pois Hirsi Ali converteu-se  recentemente ao cristianismo por motivos espirituais e culturais.  

Como encarar este “cristianismo cultural”?

Considero que este apelo a um “cristianismo cultural” constitui uma boa oportunidade de colocarmos em prática uma postura de escuta e diálogo que queremos modelar no GBU e que, enquanto estratégia, pode ser resumida numa dinâmica de concordância e crítica do tipo “sim… mas não… mas sim… ”2

SIM… a cultura e a civilização ocidental contêm muitas matizes deixadas indelevelmente pelo cristianismo ao longo dos séculos, como a obra de Tom Holland coloca em evidência. Ainda que estes intelectuais reconheçam esta evidência com décadas de atraso, e ainda que alguns deles tenham antes defendido ferozmente a tese oposta, podemos acatar esta mudança de perspetiva pacificamente e expressar a nossa concordância para com todos os que agora reavaliam o fruto do cristianismo com um olhar mais benigno. Se as afirmações dos intelectuais forem também prenúncio de maior simpatia popular para com o cristianismo, podemos dar as boas-vindas a esse fenómeno com agrado moderado, porque aquilo que lhe está subjacente é o reconhecimento de uma verdade que salta à vista: que, desde o início, os cristãos colocaram em marcha uma praxis distinta, caracterizada por abnegação, cuidado pelo próximo, e uma série de princípios éticos e morais que confundiam até os pagãos.3 Empregando estes princípios, os cristãos fundaram hospitais e escolas (desde os antigos mosteiros que cumpriam em parte essas funções a partir do século IV até às universidades modernas), reformaram sociedades (pensemos em William Wilberforce, Pandita Ramabai ou Martin Luther King Jr.), e até é legítimo defender que foram os cristãos que, munidos da necessário distinção ontológica entre Criador e criação (inexistente no paganismo), foram impelidos a investigar a criação e provocaram a génese da ciência moderna.  

(Este “SIM” deve, contudo, preservar a componente autocrítica, tendo o cuidado de não ser ingénuo ou abusivo. Nem tudo o que existe de bom na(s) cultura(s) é fruto direto do cristianismo e o cristianismo enquanto ismo, enquanto fenómeno religioso humano, não produz somente bons frutos. Longe disso! Mas essa seria matéria para outro artigo.) 

MAS NÃO… a ideia de um “cristianismo cultural” deve ser questionada por três razões, pelo menos: 

Em primeiro lugar, a ideia de que há um “cristianismo cultural” que de alguma forma se confunde com a nossa própria cultura ocidental omite (ou ignora) que os imperativos da fé cristã não autorizam os cristãos a estarem plenamente alinhados com a cultura do seu tempo. É sabido, e está amplamente discutido na literatura cristã, que, dependendo do momento histórico, do assunto em causa, de potenciais benefícios e danos para a fé, os cristãos são por vezes chamados a transformarem a cultura (posicionam-se para lá desta), a se aliarem à cultura (posicionam-se a par com esta) ou a se oporem à cultura (posicionam-se contra esta, criando uma contra-cultura).4

Em segundo lugar, na ausência de um fundamento mais sólido, a preferência de Dawkins pelo cristianismo em comparação com as outras religiões é apenas isso—uma preferência. Trata-se de uma opção pessoal de Dawkins, sem base objetiva ou ontológica. Para o cristão crente, o ethos cristão (o conjunto de costumes e comportamentos que Dawkins reconhece como marca da cultura ocidental) está ancorado no dogma cristão. Um dogma que se sintetiza, em última instância, na própria pessoa de Jesus Cristo, como aquele que revela na História a essência, o propósito e o plano do Deus trino: 

“Escrevemos acerca daquele que é a Palavra da vida, que já existia no princípio de tudo. Nós, que o ouvimos e vimos com os nossos próprios olhos, também o contemplámos e lhe tocámos com as nossas mãos. A vida deu-se a conhecer e nós vimo-la. Falamos dela e vo-la anunciamos. É a vida eterna que estava com o Pai e que nos apareceu. O que nós vimos e ouvimos vos anunciamos agora para que estejam unidos a nós. Na verdade, a nossa comunhão é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo. Escrevemo-vos isto para que a nossa alegria seja perfeita.” (1 João 1:1-4)

Mas o ethos não tem força sem o dogma. Se Jesus Cristo não é a “Palavra da vida, que já existia no princípio de tudo” e que agora se deu a conhecer, se ele era um mestre da moralidade meramente humano, e se, para lá disto, nem sequer existe Deus, então a ética do cristianismo é tão válida quanto qualquer outra, tão válida quanto uma ética de cariz islâmico, hindu, hiper-materialista, marxista, ou ditada pela minha mente individual. Por muito que a familiaridade do ethos judaico-cristão nos pareça confortável, se o dogma for rejeitado então a preferência por este ethos em detrimento de outros é totalmente subjetiva. Sem dogma, optar pelo “cristianismo cultural” em vez de qualquer outro ismo é equiparável a gostar mais de amarelo do que de verde, preferir chá ao café, ou pôr os cereais na tigela e só depois o leite. Estas são preferências e hábitos pessoais sem respaldo na essência das coisas. Neste sentido, desprovido de dogma e fé, o “cristianismo cultural” de Dawkins e dos outros intelectuais tem pés de barro, desmorona facilmente, não subsiste à própria lógica. 

Em terceiro lugar, e no seguimento do ponto anterior, questiono a promoção do “cristianismo cultural” precisamente porque inverte a ordem natural do caminho cristão tal como proposto por Cristo. Para quem lê e aceita o apelo do Novo Testamento, não existe cristianismo cultural. O caminho cristão brota da fé em Jesus Cristo (do dogma, se assim quisermos designar, ainda que não deixe der ser uma “fé que pensa, uma razão que crê”). O ethos cristão, ou seja, a vivência prática do cristianismo, é inalienável da pessoa de Jesus Cristo. 

Richard Dawkins chega tarde a este assunto, mas a verdade é que a nossa sociedade já há muito experimenta a tentativa de viver o ethos sem o dogma. Isso é patente na Declaração Universal dos Direitos Humanos que afirma a dignidade do ser humano mas não consegue justificar essa afirmação. Num livreto intitulado The Case for Christian Humanism, os teólogos britânicos Angus Ritchie e Nick Spencer, notam que o preâmbulo da Declaração apela à dignidade humana como algo autoevidente e argumentam que este apelo, ainda que seja inteligível e admirável, não é robusto do ponto de vista filosófico. Este alerta tem sido feito por muitos pensadores ao longo das décadas, desde logo por aqueles que estiveram diretamente envolvidos na redação da Declaração. Ritchie e Spencer relembram a experiência de Jacques Maritain, filósofo Católico que teve um papel de charneira no rascunho da Declaração em 1948. Maritain registou uma história irónica e paradigmática num encontro da UNESCO em que ideólogos de diferentes proveniências estavam a discutir os Direitos Humanos. Ele conta que, nesse encontro, “alguém expressou grande espanto por ver proponentes de ideologias tão diversas a chegar a acordo relativamente à lista de direitos, ao que lhe foi dito, ‘sim, nós concordamos acerca dos direitos, mas apenas sob a condição de que ninguém nos pergunte porquê’”.5

Ora, para os cristãos, o porquê é muito claro: os direitos humanos brotam da própria narrativa bíblica, em particular da mensagem e da obra de Jesus Cristo. Numa sociedade confusa, em crise, mergulhada em guerras fratricidas (quer sejam guerras armadas ou as chamadas guerras culturais), o que os cristãos têm de distinto para oferecer, para anunciar e para demonstrar não é mais um ismo, nem é algo que se reduza a uma proposta cultural entre outras, nem é sequer munição para as guerras ideológicas dos nossos intelectuais; mas é a própria “Palavra da vida”, Jesus Cristo, e a sua mensagem transformadora. Uma mensagem que, de acordo com o testemunho do Novo Testamento e com a confissão histórica dos cristãos ao longo dos séculos, tem peso ontológico. Ou seja, não é mera preferência! Dela resulta um ethos que replica a essência da existência, ancorado no carácter do Deus trino. 

Em jeito de resumo e conclusão, deixo o repto para que, ao assistirmos à promoção de um “cristianismo cultural”, saibamos reagir com um SIM, pois a nossa cultura ainda tem de facto bons frutos deixados por séculos de cristianismo e é lícito valorizarmos esse facto e concordarmos com aqueles que também o valorizam, acompanhado do MAS NÃO, que serve para: 1) prevenir a domesticação da fé cristã; 2) apontar a subjetividade de uma cultura dita cristã mas despida da fé; 3) realçar a centralidade de Jesus Cristo como a fonte única e por excelência de qualquer ethos ou cultura cristã. Finalmente, a partir terceiro aspeto do MAS NÃO, podemos introduzir o MAS SIM final. Neste diálogo do tipo “sim… mas não… mas sim…” com os proponentes do “cristianismo cultural” podemos mostrar aos nossos interlocutores que o ethos cristão não subsiste por si só mas sim alicerçado no dogma que lhe dá fundamento. Este diálogo pode criar espaço e oportunidade para que os interlocutores considerem, sim, a essência da fé cristã, a “Palavra da vida”, Jesus Cristo. Aparentemente, é precisamente isto que a ex-ateísta e agora cristã Ayaan Hirsi Ali tem feito, ao contrário de Richard Dawkins. Ainda que a conversão de Hirsi Ali seja também fortemente motivada por fatores culturais, aprecio bastante a humildade que ela revela nestas palavras: “claro, eu ainda tenho imensa coisa a aprender a respeito do cristianismo. Eu descubro um bocadinho mais na igreja a cada domingo”.6 

Este é pois o convite a fazer aos “cristãos culturais”: juntem-se a nós, aos “cristãos crentes”, no contexto de uma comunidade de fé (mesmo que inicialmente a fé seja ínfima, hesitante) para assim caminharmos juntos na descoberta semanal, contínua, gradual, e inesgotável da essência do cristianismo—ou seja, do próprio Cristo.

  1. Traduzido do inglês: Tom Holland, Dominion: How the Christian Revolution Remade the World (New York, NY: Basic Books,  2019), p. 494. ↩︎
  2. Este “sim… mas não… mas sim… ” é uma estratégia sugerida pelo pastor e autor Tim Keller para envolvimento com a cultura secular que visa afirmar, primeiramente, pontos de contacto entre a fé cristã e essa cultura para depois afirmar também os aspetos em que a fé cristã desafia essa cultura e, a partir daí, proclamar uma verdade mais profunda, mais abrangente, mais completa do que aquela que a cultura é capaz de alcançar por si só. Para mais info sobre essa estratégia, sugiro este artigo. ↩︎
  3. A respeito da igreja primitiva e dos primeiros séculos da era cristã, recomenda-se também a obra do sociólogo Rodney Stark, The Rise of Christianity. ↩︎
  4. Um tratamento clássico deste assunto, apresentando diferentes modelos de envolvimento com a cultura, foi feito por H. Richard Niebuhr em Christ & Culture↩︎
  5. Angus Ritchie e Nick Spencer, The Case for Christian Humanism: Why Christians Should Believe in Humanism, and Humanists in Christianity (London: Theos, 2014), 46. ↩︎
  6. Ayaan Hirsi Ali, “Why I am Now A Christian”, publicado em www.unherd.com a 11 de novembro de 2023. ↩︎
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