Dialogar Está Fora de Moda!

— Viver Cristo em nós num mundo polarizado —

Um texto de Manuel Rainho.

Iniciamos um novo ano letivo e o ambiente típico destes dias está no ar. Uma mistura de entusiasmo, nervosismo e ansiedade, cocktail muito comum para os lados dos corredores universitários. Mas algo mais paira no ar. Um ambiente tenso. Um ano letivo com promessa de mais greves devido a problemas que já se arrastam há demasiado tempo. Também a endémica falta de residências estudantis para tantos que precisam delas de modo a ter acesso ao ensino superior, tendo em conta os preços absurdos para alugar um quarto nos grandes centros urbanos.

Mas o forte clima de tensão à nossa volta não se fica pela Educação. É generalizado. A palavra “guerra” permanece como das mais presentes na nossa vida devido ao contínuo inferno na Ucrânia – aqui mesmo ao lado – que para além do efeito devastador naquele país, atirou-nos para um mundo cada vez mais polarizado em termos geopolíticos. Mas o registo bélico vai para além da guerra. Uma cultura de “cancelamento” crescente, com os seus julgamentos sumários em praça pública sem que se perceba bem quem são ali os juízes autorizados, ganha terreno e consolida-se (já Jesus Cristo teve de encarar o carácter assassino das multidões anónimas fanatizadas – “Crucifica-o! Crucifica-o!”). 

É notório o quanto a cultura Ocidental se tornou polarizada por default. Parece não ser já uma situação, mas um modo de ser. Como sabemos, as redes sociais deram aqui um contributo fundamental. Protegidos por um ecrã e falando para “a máquina”, perdemos o tato de expressar as nossas opiniões em amor ou respeito, estando longe da exortação de Paulo – “não façam nada por ambição pessoal nem por orgulho, mas, com humildade, considerem os outros superiores a vós próprios” (Fil. 2.3) – que apontava a atitude de Jesus como meta. Para piorar a situação, as redes facilitam a descoberta de todos os outros que parecem pensar como nós, integrando-nos em “comunidades digitais” nas quais o conforto de não se sentir sozinho conduz à construção de uma mob preparada para maltratar – novamente o “Crucifica-o! Crucifica-o!”. A partir do conforto da “minha turma”, os processos de polarização decorrem  naturalmente. Nestas comunicações ou “diálogos” sem rosto, o que fica são apenas as “ideias” que emergem das palavras de um dispositivo digital. Torna-se fácil tratar o outro como uma entidade não pessoal, vilipendiando as suas ideias com uma agressividade que não ousaríamos ter se conversássemos presencialmente. É demasiado utópica a pretensão de discutir assuntos sérios e complexos numa ferramenta que não nos dá acesso às expressões faciais ou tons de voz e que nem permite esperar com paciência uma melhor clarificação daquilo que acabou de ser dito. Aliás, numa cultura virada para a produtividade veloz e atolada em estímulos de múltiplas fontes, paciência – neste caso, a arte de se demorar com alguém para garantir que o entende – é um bem cada vez mais escasso. 

No fundo é como se tivéssemos feito morada no excesso. Um excesso que se traduz em instabilidade, ansiedade, insanidade, exclusão, pobreza e violência. Parece que falta moderação e, acima de tudo, moderadores. As pessoas parecem estar mais interessadas em construir muros do que pontes. Dialogar está fora de moda. 

Mesmo a palavra “diálogo” é imediatamente encarada com suspeita. Nesta cultura radicalizada “Dialogar” parece ser sinónimo de “não discordar abertamente das opiniões do outro”. Ora, isso não é dialogar de todo.

Mas temos de admitir, dialogar é desconfortável. E sentimo-lo quando dialogamos. Abre espaço para  a possível alteração das minhas opiniões, implica respeitar a pessoa que tem ideias contrárias às minhas ou, pior, acabar por incluí-las nas minhas. Soa-nos à possibilidade de mudar de opinião de aceitar fazer cedências. Mas aqui reside um problema imediato para o cristão. Então, não é isso que pretendemos quando falamos com alguém acerca de Cristo? Não esperamos que as pessoas possam ceder na sua opinião? Não esperamos que possam pelo menos respeitar-nos e às nossas ideias e, quem sabe,  torná-las suas? Não estamos à espera que elas mudem de opinião, ponderando seriamente no que estamos a dizer?

Se rejeitamos o diálogo, mas pretendemos que as pessoas nos escutem atentamente quando falamos, então temos aqui um problema moral inaceitável para o discípulo de Cristo. Não há diálogo sem escuta autêntica.

Jesus escutou e dialogou num mundo violento

Numa sociedade dominada pelos Romanos onde a violência, muitas vezes em grau que nos escandaliza, era aceite e banalizada como parte integrante da vida quotidiana, Jesus fez do diálogo com aqueles que pensavam e viviam de forma diferente de si (e quem não era?) uma parte incontornável do seu ministério. E porque não existe diálogo verdadeiro sem escuta atenta, os Evangelhos mostram-nos constantemente um Jesus que escuta.

Em primeiro lugar, Jesus escutou durante 30 longos anos, em silêncio sobre o seu ministério, sujeitando-se e aprendendo a cultura judaica. Regra geral, gostamos muito de enfatizar a expressão de admiração dos sacerdotes do templo que dialogaram com Jesus quando ele tinha 12 anos – “Todos os que o ouviam ficavam maravilhados com a sua inteligência e as suas respostas”(Lc 2:47) mas raramente nos lembramos do versículo anterior – “Descobriram-no dentro do templo, sentado entre os doutores. Escutava o que eles diziam e fazia-lhes perguntas.” 

Já depois de assumir o seu ministério, Jesus escuta a mulher samaritana, Nicodemos, o jovem rico, o cego de Jericó, a mulher de origem fenícia, Pilatos ou o elogiado centurião romano entre tantos outros.

No caso do centurião, o evangelista regista até que Jesus ficou admirado, surpreendido com a resposta, algo que advém de uma atenção e escuta profunda –  “ao ouvir aquilo, Jesus ficou admirado e disse para com os que o seguiam: “fiquem sabendo que ainda não encontrei ninguém com tanta fé entre o povo de Israel” (Mt 8:5-10).

Escutar com atenção era o que Jesus fazia. E escutar com atenção é intencional, é uma atitude fundada na decisão.

Escutar na Universidade

Afirmou Timothée Joset na Assembleia Mundial da IFES – International Fellowship of Evangelical Students – de Agosto passado, que “a principal vocação do estudante é aprender”. Aprender é um ato de escuta atenta. É a essência do que é ser-se estudante. Pelo que um estudante cristão deveria ser alguém que escuta duplamente. Mas, se por um lado, assumimos uma postura de escuta dentro da sala de aula em relação às matérias estudadas, por outro, não escutamos suficientemente os colegas na sua descrição da verdade e da realidade, onde se enquadram os seus desejos, aspirações, lutas internas, dúvidas e preocupações. Sem uma escuta atenta, podemos ser demasiado rápidos nas respostas padronizadas que apresentamos acerca do Evangelho. Mas este só pode ser entendido enquanto “boa nova” (enquanto evangelho, portanto) se for explicado no contexto específico da pessoa que o recebe, isto é, nas inquietações, nas interrogações, nas aspirações presentes dentro do espaço académico. Uma forma mais simples e direta de o dizer: o Evangelho só o pode ser quando falado para um contexto onde ele se aplica e não como um conjunto abstrato de doutrinas e afirmações aprendidas e repetidas de cor.  E isto não é possível se não assumirmos uma postura fundamental de escuta e diálogo no contexto para o qual fomos enviados. Jesus não se apresentou abstratamente, como um conjunto de doutrinas, mas revelou-se completamente conectado às dimensões contextuais e culturais do povo judeu. 

Invariavelmente, as estruturas da Universidade tomam contacto com o GBU a partir das suas solicitações para uso dos espaços académicos de modo a realizar ali atividades cristãs. Com muita pertinência, Prarthini Selveindran, também palestrante na passada Assembleia Mundial da IFES, chamou a atenção para o facto dos reitores e diretores do ensino superior terem nas mãos uma gestão de um espaço heterogéneo de sensibilidades variadas e que, com razão, podem olhar com desconfiança para quem apenas interage com a Universidade para pedir condições para a promoção unilateral da sua visão de mundo. A nossa atitude utilitarista e individualista pode-nos levar a proclamar o Evangelho centrados em nós próprios. Quão diferente seria se escutássemos, isto é, se estivéssemos atentos à possibilidade de viver o Evangelho na Universidade conectando-nos também às necessidades da mesma.

Escutar dá-nos o direito de falar, ou melhor, o direito de sermos escutados. Escutar dá-nos um olhar atento, descobrindo como o Evangelho pode ser conhecido, em palavras e em ação, em resposta aos dilemas concretos vividos nos nossos estabelecimentos de Ensino Superior. 

Talvez, precisamente, porque vivemos numa cultura onde o diálogo e a escuta não parecem estar na moda, temos a oportunidade de sermos sal e luz nesta matéria. Claro que não será fácil abandonar o conforto da nossa tribo, arriscando dialogar numa sociedade que parece ter a tendência de não o querer fazer. Mas reconheçamos diante de Deus a nossa incoerência, por vezes mesmo a nossa hipocrisia, e saibamos confiar que o Cristo que nos habita é a única condição que precisamos para imitá-Lo. Não precisamos de ter medo do diálogo, tal como Jesus não tinha. Avancemos no amor e não no medo, caminhando nesta cultura tensa na convicção que Deus nos capacita a viver estes tempos que Ele decidiu que seriam os nossos.

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