Ideologia e Ética no Filme Conclave

Como é que o filme “Conclave” nos ajuda a refletir sobre a natureza humana em momentos cruciais de decisão? Uma review e reflexão pela assessora Débora Campos Resina.

O Papa morreu. É tempo de reunir o conclave. Este é o mote do filme “Conclave” e, coincidentemente, foi isto que aconteceu também na história não-ficcionada da sociedade presente. O filme “Conclave” foi realizado por Edward Berger, saiu em 2024, e foi nomeado ao Óscar para melhor filme. Está classificado no género de drama, mistério, thriller e alguns críticos vão mais longe e dizem que “Conclave” é um thriller político… E nós vamos tentar perceber porquê.

Segundo o historiador Rui Ramos no podcast “E o Resto é história”*, os papas hoje em dia têm muito mais influência do que no tempo da Idade Média. No mundo moderno, o Papa é um influencer e as suas mensagens e opiniões correm o mundo (ainda mais do que as do Elon Musk). Tudo o que ele diz é escrutinado, é tido em conta pelo mundo inteiro e pode alterar ou solidificar o olhar do mundo sobre a Igreja Católica Romana. Os cardeais no filme sabem bem isso e, por isso, a escolha do novo Papa não é algo pacífico; antes pelo contrário, é uma guerra, como diz o cardeal Bellini (Stanley Tucci). Nesse sentido, este filme ajuda-nos a refletir sobre o peso da Ideologia e o papel da Ética quando se tem (temos) nas mãos a tomada de grandes decisões, neste caso a decisão de quem é o melhor candidato a Papa.

O filme apresenta personagens (cardeais) que possuem visões muito distintas entre si daquilo em que acreditam e que consideram ser o melhor para o futuro da Igreja. São exatamente esses cardeais que se destacam com um número maior de votos durante o conclave.Percebemos que há entre os cardeais uma grande divisão ideológica: de um lado os conservadores, do outro os liberais (semelhanças com a realidade poderão não ser mera coincidência…). Mas o mais interessante é que dentro deste dois lados da barricada há sensibilidades diferentes e, ao longo do filme, vamos vendo o desenrolar de posturas e atitudes daqueles que lutam pela sua agenda ideológica a todo o custo e daqueles que, apesar de terem um posição ideológica definida, lutam internamente para que o seu sentido ético não seja colocado em causa.

Analisemos resumidamente os cardeais que vão tendo mais votos no conclave:

Temos o cardeal Tedesco (Sergio Castellito) que não é muito subtil nas suas intenções. Representa o lado conservador que essencialmente quer a tradição de volta. “Sem a tradição de Roma, as coisas desmoronam-se”, afirma Tedesco, que acha importante voltar a ter um papa italiano para repor a liturgia original em latim e acusa os liberais de seguirem a “doutrina do relativismo”- a união de todas as religiões que, consequentemente, leva à desordem na sociedade. Esta é a agenda de Tedesco se se tornar o próximo Papa, pouco importando se age ou não de forma ética para a concretizar. Ao longo do filme, vemo-lo  a fazer aproveitamento político dos  acontecimentos que vão surgindo.

Mas podemos também perceber uma nuance diferente dentro do lado conservador. O cardeal Adeyemi (Lucian Msamati), cardeal africano, é aquele que parece estar melhor posicionado para ser o próximo Papa na fase inicial da votação. Percebemos a partir de outras personagens que Adeyemi  também se insere na ala conservadora, mas a sua postura é diferente da de Tedesco. É visto como um homem íntegro e parece genuinamente disposto a aceitar “o fardo” de ser Papa, pois diz sentir em si a presença do Espírito Santo. Contudo, durante o conclave será exposto algo do seu passado que o tornará inapto para a função de Papa; a sua eleição fica inviabilizada, embora fosse ele o cardeal com mais votos até àquele momento. É curioso que, na cena em que a sua tristeza é demonstrada, não o vemos a fazer um aproveitamento político da situação, apelando para se manter como candidato por ser ele o escolhido para garantir uma Igreja mais conservadora. Adivinhamos que essa seria, provavelmente, a postura de Tedesco, mas percebemos nesta cena que Adeyemi é um homem piedoso, de tal forma que a cena leva o espectador a sentir pena em relação a esta penalização de erros passados pelos quais o cardeal já se teria arrependido e pedido perdão a Deus. 

A representar o lado liberal temos o cardeal Bellini. É aquela personagem dos filmes com quem tendencialmente simpatizamos logo no início. Parece íntegro e despretensioso. É o liberal com mais votos mas inicialmente diz não querer ser Papa. Contudo, quando os votos em Bellini começam a diminuir, esta personagem amigável vai se revelando afinal como uma pessoa gananciosa cujo único objetivo passa por evitar a todo o custo um  Papa conservador – “se nós liberais não formos unidos, Tedesco vai ser o Papa” diz Bellini. Uma vez que não conseguirá atrair a maioria dos votos,  num ato de desespero e em prol de manter as reformas e o progresso feito pelos Papas anteriores, Bellini acha que o melhor – ou “a opção menos má”-  é apelar ao voto num cardeal corrupto e sem inclinação para causa alguma. Mais uma vez podemos fazer aqui o exercício da ideologia vs ética. Para Bellini, os fins (ideologia) justificam os meios (ética). 

Por último, analisamos a personagem principal – o decano Thomas Lawrence (Ralph Fiennes, nomeado para o óscar de melhor ator neste filme). O Decano Lawrence é o responsável por gerir o conclave. Conseguimos ver o peso desta responsabilidade no seu semblante constante, enquanto debate internamente as suas dúvidas de fé e crise de vocação. Lawrence é a personagem-chave para refletirmos como por vezes o nosso coração se divide entre a luta pela ideologia e a prevalência da ética. O Decano simpatiza com a  ala liberal mas percebemos que ele não se identifica com a abordagem de guerra política dessa fação. Contudo, ele sofre  uma pressão enorme dos seus amigos liberais, que acresce à pressão de gerir o conclave, e vemo-lo por vezes a ceder e a cometer atos questionáveis.  Ainda assim, para Lawrence a ética e a integridade são os valores mais altos e ele vai permanecendo nesta luta interior ao longo do enredo, num vai-não-vai entre ceder ou manter-se fiel aos valores da fé.

E nós, onde nos encaixamos? Como gerimos esta tensão entre ideologia e ética nas nossas próprias vidas? Como cristãos, temos obviamente uma perspetiva daquilo que achamos que é o melhor para a sociedade, ou seja, temos uma ideologia. Mas se fossemos um cardeal neste conclave e se víssemos que a ala com a qual nos identificamos estava na iminência de sair derrotada, qual seria a nossa postura? Se calhar para alguns de nós a resposta pode parecer óbvia. Mas afinal estes cardeais também são homens de fé, estando até nas patentes mais altas das suas carreiras religiosas; não deveria ser óbvio para eles também? Às tantas, eles desculpam-se deste modo: “Nós somos mortais. Nós servimos um ideal, [mas] não podemos ser sempre ideais”. Esta frase surge no filme como justificação de uma decisão derrotista e pouco ética. Mas a frase contém uma verdade óbvia: de facto, nós servimos um ideal, que é Deus, que é 100% bom, ao contrário dos nossos corações que são muitas vezes tentados e muitas vezes infelizes nas decisões tomadas. Mas sermos meros mortais não pode ser desculpa para justificar ações menos ortodoxas por acharmos que essa é a única opção que temos para alcançar um determinado fim. Na nossa caminhada cristã, a ideologia não pode sacrificar a ética; pelo contrário, a ética é parte integrante do ideal cristão! Atrevo-me a afirmar que nunca há uma só opção por onde seguir, temos sempre escolha e Deus ensina-nos, através da sua Palavra, como devemos agir e decidir de acordo com o seu ideal (Provérbios 3:5-6; Tiago 1:5). 

O filme “Conclave” é um filme rico em camadas temáticas e muito atual na tensão social e política que retrata. Desafiamos-te a ver este filme (e muitos outros) com um olhar crítico e a fazer uma leitura da sociedade e da natureza humana ali retratada, pensando qual a perspetiva bíblica sobre os temas abordados.

*Episódio “E se em vez de um, viessem três Papas a Portugal?” do podcast “E o Resto é História” da Rádio Observador.

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