Parar – Porque Sabemos Quem Somos

Um texto de David Raimundo, Secretário-Executivo do GBU

Sabemos Descansar?

Parar. Respirar fundo. Descansar. O calendário académico e, na maior parte dos casos, a agenda laboral permitem que o Verão inclua períodos propícios à pausa. Os exames e os prazos já ficaram lá para trás. A procura de serviços e bens diminui (à excepção, claro, do setor do turismo) e, durante um breve hiato, é socialmente aceite que sejamos menos produtivos—talvez até seja expectável. Por isso, podemos relaxar, podemos descansar. Mas será que conseguimos aproveitar? Será que sabemos fazê-lo? Numa cultura tão saturada de solicitações, listas intermináveis de tarefas, trabalhos e inquietações que irrompem constantemente no nosso quotidiano, por via das notificações e caixas de entrada, muito para lá do nosso controle, será que sabemos parar?

A escritora Susan Phillips, nota que “parar é provavelmente a ação mais contra-cultural que podemos ter numa cultura que valoriza o trabalho total. Nós temo-nos tornado cada vez menos familiarizados com a verdadeira pausa, com o descanso profundo”.1

Não é este um diagnóstico certeiro? Não é verdade que não sabemos como contrariar o nosso cansaço crónico mesmo quando o conseguimos reconhecer? Os nossos músculos exteriores e interiores, músculos do corpo e da alma, estão muito destreinados nessa prática tão exigente que consiste em… parar. E então fazemos coro com um grande poeta da nossa praça “o que há em mim é sobretudo cansaço—não disto nem daquilo, nem sequer de tudo ou de nada: cansaço, assim mesmo, ele mesmo, cansaço”2. O heterónimo Álvaro de Campos que, por sua vez, já fazia coro com o desiludido autor do Eclesiastes “Todas as coisas levam ao cansaço—um cansaço tão grande, que nem dá para contar”3. Ficamos estagnados neste coro infrutífero. Neste coro cansativo. O scroll interminável, o binging sem fim, as horas e horas de vídeos e jogos online não são mais do que sintomas deste cansaço. Mas por vezes até cedemos à ilusão de que esses hábitos nos descansam. Confundimos o escape e a inebriação que essas práticas proporcionam com o tal descanso profundo. É só a mim que isto acontece? 

O Convite das Escrituras

As Escrituras convidam frequentemente ao descanso. Desde logo naquele repto intemporal de Jesus: “venham ter comigo todos os que estão cansados e oprimidos e eu vos darei descanso… pois o meu jugo é agradável e os meus fardos são leves”4. E também nas instruções para a pausa sabática que, para o cristão, observada frequentemente e intencionalmente, seja no primeiro ou no segundo ou no sétimo dia da semana, constitui, no fundo, uma forma de irmos ter com Jesus e de experimentar o descanso que ele promete. 

O desafio do sábado, este preceito da pausa para descanso e para regozijo no Senhor, pode soar como mais uma tarefa a acrescentar à nossa interminável lista de tarefas. Mais uma obrigação a pesar sobre nós. Mas atenção: Jesus diz que os seus fardos são leves! Será que podemos descansar com leveza? 

Susan Phillips reflete sobre o sábado à luz de Isaías 58, um texto que, entre outras coisas, sugere que chamemos ao sábado a nossa delícia pois assim encontraremos no Senhor as nossas delícias5. Sábado visto como delícia e não como obrigação—conseguiremos nós adotar esta perspetiva? Phillips conclui que “o sábado existe fora da legitimação instrumental e do calculismo económico. Somos chamados a encarar o sábado como uma delícia, não como um recurso; uma dádiva, não uma mercadoria; uma disciplina espiritual, não um dever”6.

A questão da identidade

No semestre passado estivemos a refletir sobre Identidade no GBU. Num movimento que “almeja uma formação holistica que enfatiza o ser antes do fazer, a transformação interior antes do ativismo”7, quisemos reafirmar que a identidade do cristão que é estudante universitário (ou profissional nas mais variadas áreas) está alicerçada em Jesus Cristo. Como escreve a Emily Lange, “a conquista da identidade” é uma questão central na nossa sociedade, na nossa cultura. “Prova quem és, diria a cultura tradicional. Decide quem és, diria o homem moderno. Ambos acham que a identidade é algo que se adquire… mas a identidade cristã coloca-se à parte da identidade tradicional e da identidade moderna: é a única que não é conquistada — só pode ser recebida”8. A identidade do cristão é uma dádiva, assim como o sábado é uma dádiva. E essas dádivas—essa graça recebida que inclui a reconciliação com Deus e traz consigo todas as “gloriosas riquezas em Cristo Jesus”9—constituem o núcleo central das nossas vidas, a essência a partir da qual tudo o resto brota. Neste sentido, “o sabático não devia ser um lugar para onde retrocedemos. Devia estar incorporado no nosso ritmo e ser o lugar de onde somos, sentimos, pensamos e fazemos”10.

Assim, podemos parar, porque estamos seguros de quem somos. Podemos descansar, porque sabemos que a nossa identidade está como que escondida, preservada, guardada em Cristo11. Eu não sou os meus estudos, as minhas tarefas, o meu trabalho ou a minha carreira. O meu ser em Cristo não é validado por nada disto. É pela graça e é de graça. 

Posso parar.
Porque sei quem eu sou. 

  1. Susan S. Phillips, The Cultivated Life: From Ceaseless Striving to Receiving Joy, Intervarsity Press Books, 2015, p. 78. ↩︎
  2. Álvaro de Campos, Obra Édita. ↩︎
  3. Eclesiastes 1:8a (NTLH) ↩︎
  4. Mateus 11:28-30 (BPT) ↩︎
  5. Isaías 58:13-14 (BPT) ↩︎
  6. Phillips, The Cultivated Life, p. 100. ↩︎
  7. Plano de Formação do GBU (2023-2026) ↩︎
  8. Emily Lange, Dissonância: Ensaios em Bossa Menor, livro em fase de publicação pelo GBU, em breve nas bancas ↩︎
  9. Cf. Filipenses 4:19 (NVI) ↩︎
  10. Lange, Dissonância. ↩︎
  11. Parafraseando Colossenses 3:3: os nossos projetos de conquista da identidade já caíram por terra e a nossa verdadeira identidade, a nossa verdadeira vida, está agora escondida em Cristo. ↩︎
recebe as nossas novidades
apoia
segue-nos