“Nós não somos o curso que tirámos nem o trabalho que fazemos” Mensagem aos Finalistas

Discurso do graduado Natanael Gama para a Benção de Finalistas em Lisboa, maio 2024

Gostaria de dirigir-me especialmente aos Finalistas deste ano. Antes de mais quero dar-vos os parabéns por terem concluído o vosso curso. Através de sagas de estudo, noitadas para acabar trabalhos e revisões já dentro dos transportes públicos vocês conseguiram chegar ao final desta etapa da vossa vida. Parabéns! Quero ainda elogiar publicamente todos aqueles que, juntamente com tudo isto, encontraram espaço, na agenda e no coração, para viver a vossa fé na faculdade ao participaram em núcleos, plenárias e outras atividades proporcionadas pelo Grupo Bíblico Universitário.

Há 15 anos atrás, eu estava aí onde vocês estão. Estava a concluir o curso de Design Multimedia e estava, muito provavelmente, sem qualquer ideia concreta do que poderia ser o meu futuro. É muito provável que a maioria de vocês se encontre, neste momento, numa espécie de câmara de descompressão, enquanto se mudam do ambiente académico para o ambiente laboral.

Talvez alguns de vocês já tenham projectos claros para a etapa seguinte da vossa vida, outros talvez estejam completamente à nora. Ao contrário do que aconteceu até aqui, eis que agora o chão que têm adiante de vocês, não está pavimentado nem há indicações, está inclusive tudo cheio de vegetação que vocês próprios terão de desbravar. Uma das grandes vantagens da escola é que nos dá um caminho feito, o qual só precisamos de percorrer. Mas agora vocês terão de criar o vosso próprio caminho. E isto tem tanto de entusiasmante como de assustador.

Eu não podia imaginar que pouco depois da minha benção de finalistas eu estaria a emigrar para os Países Baixos, para trabalhar num famoso atelier e descobrir que, afinal, não era aquilo que eu queria fazer. Eu não queria trabalhar na área que estudei. *Inserir Música Dramática* Fast forward 13 anos, e eu estou a vender a empresa que criei para, num salto de trapézio, procurar fazer alguma coisa mais próxima da minha vocação. Tanta mudança… Tudo completamente impossível de antever. Muito provavelmente vocês vão passar por mudanças semelhantes. O mundo já não é o que era no tempo dos nossos pais, muito menos o que era no tempo dos nossos avós. As mudanças são inevitáveis. E passar por elas pode ser algo desconcertante, especialmente se construirmos a nossa identidade a partir dessas coisas fluídas e transitórias como estudos e profissão.

Nós não somos o curso que tirámos nem o trabalho que fazemos.

Quem somos nós, então?

Consumidores? Contribuintes?

A promessa oca do mundo ocidental (e não só) é que se trabalharmos muito, eventualmente ganharemos muito dinheiro. E quando tivermos muito dinheiro, então teremos prazer ilimitado, zero sofrimento e a segurança de que tudo vai ser assim para sempre. Há muita gente a acreditar nesta tolice. Eu próprio, às vezes, acredito.

Byung-Chul Han, no seu livro “A Sociedade do Cansaço” aborda como na sociedade contemporânea sofremos de uma compulsão para produzir e como cada um de nós é, simultaneamente, escravo e senhor, “explorando-se a si próprio”. Se não tivermos cuidado facilmente nos tornamos pequenos hamsters a correr infinitamente naquela rodinha que não leva a lugar nenhum.

Nos altares da carreira e do dinheiro, sacrifica-se diariamente a saúde física e mental, as relações familiares, as amizades, o nosso propósito e a nossa espiritualidade.

O trabalho é profanado quando é reduzido a uma forma de obter sustento. Deus criou o trabalho para que nos realizemos nele e para que através dele sejamos co-criadores com Deus, cultivando e guardando o Éden de Deus, participando assim no seu florescimento. (Génesis 2:15)

Cada um de nós, exercitando com diligência os seus gostos e capacidades, revela vislumbres da glória de Deus neste mundo. Somos participantes do sonho de Deus e não devemos ficar distraídos com promessas menores como o dinheiro e o estatuto.

Por isso:

Engenheiros, engenhem para a Glória de Deus!

Médicos, mediquem para a Glória de Deus!

Músicos, musiquem para a Glória de Deus!

Designers, desenhem para a Glória de Deus!

Educadores, eduquem para a Glória de Deus!

Advogados, advoguem para a Glória de Deus!

Investigadores, investiguem para a Glória de Deus!

Arquitetos, arquitetem para a Glória de Deus!

Gestores, Giram para a Glória de Deus!

Jornalistas, Antropólogos, Biólogos, Matemáticos, Físicos, Historiadores, Dentistas, Assistentes sociais, Psicólogos e o que mais haja vão por esse mundo e sirvam o vosso irmão como ao Senhor!

Esse talento e conhecimento que Deus vos confiou, por favor usem-no. Usem-no de uma forma que honre aquele que vos capacitou. Não enterrem o vosso talento ao se permitirem viver aquém do vosso propósito, a troco de algum dinheiro para pequenos prazeres.

Alguns teólogos propõe que os cristãos estão a viver numa espécie de exílio, um exílio cultural. Não nos encontramos num habitat onde seja natural, simples e fácil obedecer a Deus. Há uma torrente de ideias, sistemas e tecnologias a vazar na nossa cultura que, intencionalmente ou não, têm por objetivo extinguir a chama do Espírito nos nossos corações. O que Jesus disse aos seus discípulos então, ecoa para nós, seus discípulos, hoje: Eis que vos envio como ovelhas para o meio de lobos. (Mateus 10:16)

Não extingam o espírito. (1 tessalonissences 5:19). Ser cheio desse Espírito que energiza o Cristão não é uma tarefa do clero, mas de cada cristão. E que diferença fará se fizermos esta oração antes de iniciarmos os nossos trabalhos: Senhor, enche-me do teu Espírito.

Vocês finalistas, na verdade todos os nós, somos enviados ao mundo, para sermos sal e luz. Através do nosso trabalho realizamos a vontade de Deus no mundo. É atribuída a Martinho Lutero a ideia de que o agricultor que remove o estrume ou a criada que ordenha uma vaca agrada a Deus tanto como o ministro que prega ou ora. Deus realiza a sua vontade no mundo através das nossas vocações. O pão que oramos no pai nosso é amassado por um padeiro. Somos participantes neste “ecossistema” em que, através do amor serviçal, suprimos as necessidades uns dos outros. Um mundo onde uma qualquer vocação simplesmente desaparecesse seria um mundo destinado a um inevitável colapso. Imaginem um mundo onde não havia mais medicina, ou engenharia, ou música, ou matemática, ou política.

Tu trazes ao mundo uma contribuição vital, que será tanto mais significativa quanto permitires que Deus te guie no exercício da mesma. O mundo onde, através do trabalho, com amor ao próximo, realizamos a nossa vocação foi o mundo que Deus criou e viu que era bom.

Mas talvez tu não encontres logo trabalho, ou não encontres exatamente o trabalho que gostarias de encontrar. A vida não é perfeita. Este mundo sujeito ao pecado e às suas consequências possuí uma hostilidade para com o normal florescimento das nossas vocações. São espinhos e cardos que pontuam a nossa jornada. (Génesis 3:18)

O teólogo Hans Kung disse que cada um de nós possui um grande propósito e um pequeno propósito. O que tenho vindo a falar até aqui é o pequeno propósito, que é o propósito particular, aquele que é só teu. Mas existe também um grande propósito, aquele que é universal, comum a todas as pessoas: cuidar, servir, comungar. No fundo: amar. E se é verdade que o nosso pequeno propósito nem sempre se consegue manifestar da forma mais plena, é também verdade que podemos sempre prosseguir na realização do grande propósito. Por vezes temos que, como Paulo, construir tendas, só porque precisamos de pagar as faturas. E podemos aceitar isso sem grandes dramas. Na verdade um dos grandes desafios da vida adulta é manter-mos os sonhos vivos, sem nos deslumbrarmos em demasia, e aceitar-mos as responsabilidades sem ficarmos resignados.

Se puder tentar resumir tudo o que falei até aqui é que, tu e eu, não vivemos para nós mesmos. Viver para nós próprios é uma forma de vida que se esgota muito rapidamente. As tuas capacidades foram te dadas e têm uma finalidade no grande esquema das coisas. Somos células de um organismo e participamos juntamente em algo grandioso. E por mais contra-intuitivo que possa parecer, somos muito mais felizes quando procuramos o florescimento do todo do que quando procuramos apenas o satisfação dos nossos desejos. Termino com um frase daquele que é certamente o maior exemplo para a maioria dos presentes, Jesus:

Quem põe os seus próprios interesses em primeiro lugar nunca terá a vida verdadeira; mas quem esquece a si mesmo por minha causa terá a vida verdadeira. O que adianta alguém ganhar o mundo inteiro, mas perder a vida verdadeira? Pois não há nada que poderá pagar para ter de volta essa vida. Mateus 16: 25 e 26 

Natanael Gama, tipógrafo e professor tipografia/design na Escola Superior de Artes e Design nas Caldas da Rainha.

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