Nem Virados para Dentro, Nem Virados para Fora, Mas Todos Virados para Cristo

Um texto de Manuel Rainho, Secretário-Geral.

Jesus foi enviado ao mundo. E nós também. (João 17:18). E ser-se enviado é estar em missão.

A missão que Cristo deu à Igreja pode ser comparada às duas fases da respiração: a inspiração é o momento para estar reunida, recebendo a doutrina dos apóstolos, em comunhão partindo o pão e orando (Atos 2:42). Na expiração somos enviados como embaixadores aos locais de trabalho, às universidades e ao nosso bairro, participando daquilo que Jesus já está ali fazer à nossa volta (colossenses 1:19,20 e 2 corintios 5:17,18). Um sangue bem oxigenado precisa deste movimento do pulmão. Ser igreja, portanto, é estar “em movimento” entre estes dois diferentes momentos.

Mas temos de admitir que viver entre estes dois pólos não é fácil e muitas vezes acabamos por criar dois espaços estanques, sem qualquer conexão. Como a sociedade surge-nos não raramente como hostil às pretensões cristãs, isso gera uma dupla forma de interação na vida do crente: uma postura e linguagem dentro da igreja, outra diferente fora dela. Desconectamos o “mundo lá fora” da realidade mais confortável “dentro” da igreja.

Não deixa de ser um fenómeno compreensível: enquanto Igreja, somos peregrinos nesta sociedade, pois a nossa cidadania não é deste mundo (João 17:16). Mas por outro lado, o fosso fundo por vezes criado entre estas duas realidades perturba o “respirar” que deveria ser sadio, entre estar com a congregação dos irmãos e o mundo para o qual somos enviados em missão. De facto, Jesus foi muito claro ao pedir ao Pai que não nos tirasse do mundo (João 17:15). 

Imagino que a dificuldade que qualquer cristão hoje sente diante desta dupla realidade deve ser semelhante àquela que os judeus no exílio sentiram quando receberam da parte de Deus, através de Jeremias a indicação de que deveriam trabalhar para o bem e prosperidade das cidades para onde haviam sido levados cativos (Jeremias 29:4-7). Devem ter ficado muito espantados ao ouvirem semelhante instrução, eles que só queriam regressar à sua terra e combater aqueles que os tinham exilado. De facto, a tarefa que Deus lhes havia apresentado não era nada fácil: simultaneamente, manterem-se puros e trabalhar para o bem e prosperidade (shalom) da sociedade em que estavam como prisioneiros.

O facto de sermos peregrinos não é desculpa para o cristão cultivar a sua vida quotidiana num fosso entre o “lá fora” e “ cá dentro”. Pelo contrário, estes “dois mundos” sobrepõem-se naturalmente quando cristãos e não cristãos procuram juntos o shalom da cidade mencionado em Jeremias, isto é, a paz, a prosperidade, o bem estar do bairro, empresa, universidade da qual fazemos parte. No serviço conjunto, não há mais “fora” nem “dentro”, mas cristãos que vivem Cristo de igual modo em qualquer circunstância, juntamente com quem não se identifica com a fé cristã.

Mas isto não é fácil de conseguir por causa das nossas tendências interiores. Há até um fenómeno psicológico deveras curioso que acontece tantas e tantas vezes ao cristão: tão habituado que está a ter linguagens e conversas diferenciadas, dependendo se está fora ou dentro da igreja, que quando é necessário interagir simultaneamente com um grupo “misto”, o cristão perturba-se com a disforia sentida. Nessas alturas, programado como está a ter duas “linguagens” diferentes, o cérebro bloqueia e não sabe como agir. A forma como resolvemos esta duplicidade nas atividades da igreja é criar eventos “evangelísticos”, próprios para aqueles que não são cristãos. Ali os cuidados e a linguagem são outros e as regras mudam. Dividimos, assim, as atividades “para fora” das atividades “para dentro”, mas cavamos um fosso ainda maior na nossa disforia, pela pedagogia implícita ali presente. 

Viver na universidade como preparação para o futuro: nem virados para dentro, nem virados para fora, mas todos virados para Cristo.

No modelo da Encarnação de Cristo, as coisas  são, todavia, muito diferentes. Deus não envia o seu Filho num evento e encontro religioso específico, próprio para o receber. Ele é enviado nos atos mais naturais da vida humana: o nascimento, o choro, as mudanças de fralda, o aprender a mamar e a comer, o deixar-se cuidar em total vulnerabilidade, o assimilar a língua, os modos e trejeitos da família, o escutar os sons dos animais da pastorícia, as canções do trabalho no campo, os odores específicos da flora daquela região da Galileia, o sentir o chão onde se cai várias vezes para aprender a andar, o aprender a comportar-se na cultura daquela aldeia de Nazaré. O irromper do eterno no tempo dá-se numa imersão completa neste mundo: esse é o modelo da Encarnação. Nele “Fora” e “Dentro” faz tudo parte do mesmo lugar. 

No GBU procuramos refletir, viver e comunicar a mensagem de Jesus Cristo, servindo e influenciando a academia, a igreja e a sociedade ao longo do tempo de estudos e para o resto da vida. Ora, preparar os estudantes para viver a fé no local de trabalho é precisamente ensiná-los a quebrar esta dicotomia entre “fora” e “dentro” para que realmente possam saber estar e viver Cristo em cada circunstância das suas vidas, interligando e misturando esses “dois mundos”. Por isso, “nem virados para dentro, nem virados para fora, mas todos Virados para Cristo”tem sido o nosso lema junto dos estudantes! Não se trata aqui de dividir encontros “para dentro” dos “para fora”, mas de estarmos, em qualquer momento e entre quaisquer circunstâncias, virados para Cristo! 

Relembro-me do meu próprio espanto quando decidi pedir uma opinião a um graduado do GBU sobre o documento que atualmente orienta a filosofia de ministério do GBU. Para meu espanto, este mesmo ex-estudante do GBU entregou esse documento aos seus colegas de trabalho que não se identificam como cristãos e perguntou-lhes o que eles achavam do seu conteúdo. Depois entregou-me as suas opiniões assim como as dele. Eu sei que eu não deveria ter ficado espantado com esta situação, mas admito que fiquei. Precisamente porque não estamos habituados a esta sobreposição de “mundos”. O resultado final foi muito útil e relevante.

Numa outra circunstância, o GBU de Aveiro teve de lidar com dois estudantes, (um ateu, outro em busca se a fé cristã seria viável e verdadeira) que se ofereceram para ajudar na organização de um evento do GBU naquela cidade. Ambos tiveram oportunidade de ajudar e contribuir com os seus esforços, apesar de ambos não serem cristãos, mas o ainda mais insólito é que um deles pretendeu inclusivamente participar dos encontros de oração que decorriam pelo evento em causa. E fê-lo! Não pode haver mais sobreposição de mundos possíveis do que esta. No final daquela semana, o estudante em causa decidiu começar a seguir Jesus… 

Há muitos anos participei de uma formação com o falecido pastor Tim Keller, onde ele elencou características da nossa cultura secular e nos apresentou uma série de princípios a ter na interação com a mesma. Deixo aqui alguns que poderão ajudar-nos a viver de forma menos dicotómica:

  1. Habitue-se a falar como se estivesse diante de um grupo heterogéneo e não só dentro de uma comunidade cristã, mesmo quando está entre cristãos.
  2. Não seja ingénuo abordando um assunto apenas pelo ponto de vista cristão. Se tivermos contacto com diferentes perspetivas sobre o assunto abordado, estamos mais conscientes das outras formas de pensar e mais capazes para o diálogo no decorrer da nossa missão.
  3. Verifique se usa linguagem alienante: comentários cínicos sobre outras religiões ou formas de pensar diferentes das nossas demonstra estar envolvido numa “bolha” cultural. O jargão que só os cristãos entendem também não facilita a comunicação.
  4. Permaneça consciente dos seus pressupostos (não só os dos outros) e dos fundamentos dos mesmos: não assuma que todos partem dos seus pressupostos. Apresente regularmente as razões pelas quais acredita no que acredita.
  5. Esteja à espera da dúvida e respeite-a: trate sempre as dúvidas sobre a fé cristã com respeito. Evite passar a ideia de que a fé é imune a qualquer tipo de dúvidas e que quem duvida da verdade do cristianismo são as pessoas menos inteligentes. É importante reconhecer a possível presença de quem duvida no modo como falamos e transmitimos uma mensagem.
  6. Providencie exemplificações do que afirma que façam sentido tanto para cristãos como para não cristãos. Ou então adicione algumas que sirvam para uns e outras para outros.
  7. Conecte o Evangelho com as referências culturais atuais, demonstre que está por dentro das interrogações e referências usadas hoje em dia. Assim poderá demonstrar como a Bíblia há muito tempo que já fazia as mesmas interrogações e abordava, de forma culturalmente diferente, os mesmos problemas.
  8. Procure autenticidade evitando tudo o que pareça demasiado polido e artificial, repetição de frases feitas, descrição da caminhada de fé através de slogans que mais parecem de vendedor, onde tudo é perfeito.

O nascimento de Jesus é a junção entre os mundos materiais e espirituais, é a recusa de se dividir em parcelas, entre sagrado e profano, entre “para fora” e “para dentro”. Quanto menos vivermos a nossa fé a partir desse binómio, mais o Evangelho será vivido no quotidiano da vida real de todos nós – na Universidade, no trabalho, na igreja, na família –  tal como Cristo viveu no seu dia-a-dia ao ser enviado ao mundo. 

O meu desejo é que o Natal não seja apenas uma festa de celebração entre a família, mas também uma oportunidade  de reflexão sobre aquilo que representa e das implicações  práticas para a nossa vida hoje. Que não seja tanto uma época, mas um modelo, uma forma de estar diante de Deus e deste mundo. Que possa ser entendido a partir do coração de Deus, não como fase necessária para a cruz, mas como algo intencional da parte de Deus, a partir do qual nos pretende ensinar algo, estabelecendo um horizonte e apontando uma direção. Que a celebração deste Natal seja a celebração de uma fé vivida sem fronteiras e limitações artificiais, que penetra naturalmente cada esfera e dimensão do nosso viver quotidiano. 

Feliz Natal!

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