A Universidade sob o Olhar de Um Professor Cristão – Entrevista a Natanael Gama

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Esta é mais uma entrevista para a rubrica Uma conversa com a Universidade. Desta vez a Priscila Rodrigues, estudante de Comunicação na Escola Superior de Comunicação Social do Politécnico de Benfica, entrevistou o Natanael Gama, professor de tipografia/design que nos traz o seu olhar para a realidade da Universidade. O Natanael é também graduado do GBU tendo participado enquanto estudante no núcleo da ESAD nas Caldas da Rainha e tendo desde então cooperado com o GBU em muitas iniciativas.

Priscila: És um professor cristão no contexto universitário/politécnico. Podes contar-nos um pouco do teu percurso a este respeito: como começou e qual é a tua experiência até à data? 

Natanael Gama: Então eu sou antes de tudo um cristão e estou na faculdade na qualidade de professor. Cristão é aquilo que eu sou e quero acreditar que isso se reflete em todas as coisas que eu faço na minha vida, tais como ser marido, pai, profissional, etc. Eu dou aulas há cerca de 5 ou 6 anos. Por acaso nunca imaginei que viria a dar aulas no contexto do ensino superior, mas fui convidado por ex-professores e acabei por ir dar aulas precisamente na mesma escola onde estudei. É interessante esta continuidade, esta oportunidade de estar no mesmo espaço, de estar agora a ensinar nas mesma salas onde estive antes a aprender.

Priscila:  Como é que tens vivido o desafio de conectar a fé cristã ao mundo académico e à tua atividade docente? Quais são os principais desafios e aprendizagens que tens feito a este respeito?

Natanael Gama: Eu gosto de refletir sobre as coisas que faço e sobre o sentido das mesmas. Eu sou professor de tipografia (uma subárea do design) e esta não é propriamente uma área na qual uma pessoa pensa que pode contribuir de forma muito direta para a sociedade, ao contrário do que aconteceria noutras áreas.  Por exemplo, se eu fosse professor de filosofia ou outras matérias afins eu acharia inicialmente que isso me permitiria comunicar aquilo em que acredito e assim influenciar positivamente a sociedade. Mas tenho vindo a repensar um pouco esta ideia e tenho chegado à conclusão que a tarefa primordial do professor é amar os alunos. E isto é muito difícil! Mas eu acho que esta é a essência de ser professor e depois as outras coisas vêm por acréscimo. Quando tu amas uma pessoa e tu percebes que ela tem uma lacuna, tu vais ensinar e dar de ti para suprir essa lacuna…Então eu não vejo a sala de aula como um sítio onde eu vou debitar matéria ou meramente criar profissionais. Quero acreditar que aplico a fé cristã de forma prática na sala de aula ao ser empático e ao procurar perceber a situação de cada estudante. Mas por outro lado também tento ser exigente, principalmente quando estamos a falar de disciplinas que tocam a busca do Belo que é uma questão importante para os cristãos. É necessária alguma dose de exigência e apelar ao senso de responsabilidade e diligência dos alunos. Com a minha prática docente também descobri uma coisa importante: que não é possível ensinar nada a ninguém. As pessoas é que aprendem. Tu dizes exatamente a mesma coisa aos alunos e alguns não aprendem nada enquanto outros aprendem tudo. Há uma simbiose entre professor e estudante e têm de ser os dois a dar tudo para que haja realmente uma passagem de conhecimento.

Priscila: A partir do teu olhar de bastidores, enquanto docente, como é que vês a Universidade na sociedade atual? Quais os pontos fortes que identificas e quais os principais problemas da Universidade?

Natanael Gama: No passado, se calhar até mais nas décadas antes de eu próprio estudar, e pensando sobretudo nas universidades de artes, as Universidades eram lugares de absoluta liberdade. Penso que isso se sentiu muito após o 25 de abril, pois todo o movimento estudantil era um movimento de afirmação da liberdade. E eu acho que isso era muito bom. Mas no contexto em que estamos a viver acho que essa liberdade está a esmorecer. Eu acho que a palavra “universidade” é a combinação da palavra “unidade” e “diversidade” e esse espírito da universidade em que a pessoa é exposta a uma diversidade enorme e depois tenta encontrar a sua unidade dentro dessa diversidade traz uma grande riqueza. Mas hoje apercebo-me de vários movimentos que restringem essa diversidade e querem que a universidade seja um espaço com uma voz única, seja unívoca, e nesse sentido penso que a Universidade está a piorar.

Em contrapartida, acho que a Universidade está a melhorar num outro sentido, pois temos percebido que certos modelos de ensino não funcionam, designadamente o modelo educativo muito influenciado pela revolução industrial que se assemelha a uma linha de montagem. Nesse modelo, ao invés de termos peças para fabricar aparelhos, temos cabeças de pessoas nas quais se debita informação estruturada por horários… Isso é tudo muito inorgânico, mas felizmente acho que temos percebido que esses modelos não funcionam e temos introduzido alguma espontaneidade. O ensino está a ficar mais orgânico e isso pode ser muito benéfico.

Priscila: “Uma fé que pensa, uma razão que crê“ tem sido um dos lemas do GBU. Na tua opinião, como é que estas duas coisas, a crença e o saber, se têm relacionado no espaço universitário? Será possível e desejável que a crença e o saber convivam melhor nesse espaço?

Natanael Gama: As universidades tendem a ser espaços altamente secularizados. Não há muito espaço para uma fé pública. As pessoas podem ter as suas convicções pessoais e privadas e acho que quanto a isso nem há tanto estigma como havia há alguns anos atrás. Mas permanece uma certa cisão que resulta de um equívoco do que é um estado laico. O princípio do estado laico é muitas vezes confundido com o estado ateu, mas o estado verdadeiramente laico é um estado que  permite que todas as sensibilidades e perspectivas convivam na esfera pública. Neste sentido, a universidade deveria ser, se calhar até mais do que qualquer outro espaço, o espaço onde de facto as várias sensibilidades se podem expressar. No meu contexto académico, que é o contexto das artes, acho que o conflito não é tanto entre fé e razão mas entre sentimento e fé. Os artistas são pessoas que convivem muito com a dimensão mais emotiva da vida e da sensibilidade humana e esta dimensão por vezes dá-nos respostas certas e por vezes dá-nos respostas erradas. Mas o ideal, em qualquer circunstância, é procurar essa unidade entre fé e sentimento e razão. Uma pessoa saudável é alguém que tem essas várias dimensões da vida em boa sintonia.

Priscila: O que dirias, em jeito de conselho e encorajamento, aos estudantes cristãos que desejam viver plenamente a fé cristã no contexto da Universidade? De que formas é que imaginas que estes estudantes podem contribuir para uma universidade melhor?

Natanael Gama: Qualquer pessoa, pelo simples facto de existir, traz qualquer coisa de único e de irrepetível ao mundo, revela um brilho, uma tonalidade daquilo que Deus é. Ou seja, ao sermos imagem e semelhança de Deus trazemos algo de Deus a este mundo, refletimo-Lo de alguma forma. Acho que devemos acreditar nisto, acreditar que temos alguma coisa para dar ao contexto em que estamos e às pessoas que ali estão. Devemos também acreditar que a nossa fé cristã e os valores associados a Cristo são uma coisa preciosa, um tesouro riquíssimo que podemos partilhar com alegria e coragem. Porque a verdade é que há muitos “tesouros” na nossa cultura, mas muitos deles são de qualidade muito inferior ou até mesmo de qualidade questionável… se calhar alguns não são tesouros de todo, mas são partilhados de uma forma efusiva. Nós às vezes enquanto cristãos temos algum acanhamento, mas eu penso que não há necessidade disso. Há que ser franco a respeito daquilo em que se acredita, ser genuíno, pois temos algo que é bom e que o mundo precisa. Uma das grandes críticas dirigidas aos cristãos é que somos hipócritas, mas eu acho que as novas gerações já não têm a tendência de ocultar os seus dramas e já não são moralistas. Por isso essa crítica não é justa. O estudante cristão pode simplesmente dizer, com ousadia e humildade, “eu acredito nisto, acho que isto é bom, admito que não consigo ainda viver a 100% a minha fé, mas estou a tentar…” Acredito que a nossa cultura está muito aberta a este tipo de testemunho.

Natanael Gama, tipógrafo e professor tipografia/design na Escola Superior de Artes e Design nas Caldas da Rainha.

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