O chatgpt e O “COMO” da MISSÃO NA UNIVERSIDADE

Autoria de David Raimundo

*Um texto que também reforça o repto do Fórum Nacional de Formação do GBU realizado entre os dias 3-5 de março

Questões Suscitadas Pelo Advento da Inteligência Artificial

Por estes dias surgem nos meios de comunicação social muitas reações ao chatgpt e às implicações desta ferramenta para diversas áreas de atividade humana. Caso isto ainda não tenha surgido no teu radar, o chatgpt é um sistema de inteligência artificial (IA), online desde novembro do ano passado, que interage com os utilizadores (como a já velhinha Siri, mas muito mais desenvolvido). Esta IA está dotada de complexidade suficiente para dar respostas elaboradas e com elevado grau de coerência às perguntas feitas pelos utilizadores. A respeito das implicações para o discipulado cristão, Jason Watson reflete num artigo para o Movimento Lausanne (um movimento evangélico internacional com o qual o GBU tem afinidade) acerca das respostas dadas pelo chatgpt a perguntas tais como “o que é que eu preciso de fazer para me tornar discípulo de Cristo?” ou “o que significa viver uma vida que reflete a fé em Jesus e seguir os seus ensinos?” As respostas dadas pela IA estão tecnicamente corretas, pelo que podemos até colocar a questão: será que o chatgpt nos pode substituir na missão de discipulado? 

Se a nossa missão consiste essencialmente na transmissão de informação, então a perfeição em potência do chatgpt pode efetivamente anular o nosso papel humano. Esta questão tem a ver com o “como” da missão cristã, algo que o orador Alfredo Abreu abordou no recente Fórum Nacional de Formação do GBU e que este texto vem reforçar.

Para além das eventuais implicações para o discipulado, o advento do chatgpt coloca em causa, de uma forma mais geral, os métodos de ensino e de avaliação tradicionais. Esta ferramenta de IA pode, por exemplo, simular ensaios e artigos académicos a partir de um tema ou tópico definido pelos utilizadores. E é precisamente esta característica que tem feito correr muita tinta… De que formas é que o ensino e a Universidade vão ser revolucionados pelo chatgpt e por outras ferramentas de IA ainda mais eficazes que lhe venham a suceder? Será que uma IA pode substituir um professor? Será que os ensaios gerados automaticamente por estas ferramentas sobre um determinado tema tornam obsoleto o trabalho de pesquisa e de escrita sobre esse tema? 

O Fenómeno de “Excarnação” vs a Encarnação de Cristo

Sem ter a pretensão de ditar uma opinião definitiva sobre este assunto e sobre as muitas questões que ele suscita, parece-me oportuno esboçar algumas considerações prévias a partir de uma perspectiva cristã. A grande tentação do nosso tempo (quiçá de todos os tempos) é a tentação de escapar da natureza humana. A tentação da virtualidade, do algoritmo sem rosto, do relacionamento sem gesto e sem abraço, do conhecimento sem fricção, sem nuance. Creio que é esta tentação que o filósofo Charles Taylor apelida de “excarnação”, a tentativa de fuga da vida “encarnada”, fuga da vida vivida no corpo situado na realidade imediata que o rodeia para uma vida puramente mental e virtual. Uma fuga que caracteriza, em muitas áreas, a nossa sociedade hiper-digitalizada.

Contudo, e em contramão com este fenómeno de “excarnação”, a visão de mundo cristã (cosmovisão cristã) é profundamente moldada pela crença na encarnação de Cristo. A Palavra encarnou (João 1:14), Deus Filho fez-se ser humano, e esse “movimento descendente” de Deus revela-nos, entre outras coisas, que:

  1. “Ele, que por natureza era Deus, não quis agarrar-se a esse direito de ser igual a Deus.” (Filipenses 2:6). Antes aceitou limitar-se à condição de homem. [Em sentido inverso, o ser humano cede, desde os primórdios, à tentação de usurpar Deus, de ser como Deus; ver Génesis 3:5.] 
  2. Deus em Cristo não se coibiu de assumir a natureza humana com todas as limitações e contingências que lhe são inerentes. A Definição de Calcedónia, uma importante síntese doutrinária sobre a pessoa de Cristo, datada do ano 451, afirma que, a par com a sua absoluta divindade, Cristo é “em todas as coisas como nós, mas sem pecado” (ver também Hb 2:15). Neste sentido, porque Cristo não se coibiu de ser em todas as coisas como nós, a encarnação constitui uma afirmação tácita de que nada daquilo que é inerente ao ser-se humano é indigno ou vergonhoso (assumo que o pecado é inerente à presente condição humana, mas não é inerente à verdadeira humanidade que encontramos em Cristo, cf. Ef. 4:24). Pelo contrário, a encarnação valoriza e afirma o ser-se humano.  
  3. Deus quis ser conhecido e reconhecido entre os seres humanos por meio das capacidades sensoriais, cognitivas e afetivas inerentes à nossa humanidade: a missão dos apóstolos consistia em anunciar aquilo—Aquele!—que tinham ouvido, visto, tocado com as próprias mãos (1 João 1). Deus quis dar-se a conhecer no meio do drama humano, com rosto, mãos e gestos, por meio dos relacionamentos humanos com toda a complexidade e fricção que caracteriza esses relacionamentos. 

Esta dissertação teológica tem implicações práticas, uma vez que, se Deus não se coibiu de tomar forma humana e de ser em todas as coisas como nós, também nós, seres humanos, podemos agora abraçar a nossa humanidade e as contingências que lhe são próprias, sem um espírito escapista. A encarnação de Cristo constitui um convite para aceitarmos o facto de que somos “carne”, seres materiais, limitados no espaço e no tempo, com rostos, mãos e gestos. 

A Verdade que Transforma é Encarnacional 

Tendo a encarnação de Cristo como alicerce da nossa cosmovisão, podemos agora compreender que, se a Verdade (com V grande) é conhecida e reconhecida no meio do drama humano, de forma orgânica, relacional, encarnacional, o mesmo acontece com todas as outras verdades que tecem conjuntamente o conhecimento humano—pelo menos aquelas verdades que não são meras abstrações e que têm o potencial de nos transformar enquanto pessoas e comunidades. 

E é aqui que chegamos novamente ao chatgpt e às questões que têm sido colocadas a respeito do ensino e da Universidade. Será que a interação entre um utilizador e uma interface de IA tem o mesmo valor humano, o mesmo potencial transformador, a mesma capacidade de gerar eurekas, que a interação entre aluno e professor? Será que um ensaio gerado automaticamente pelo chatgpt sobre a costa atlântica portuguesa pode ter o mesmo valor humano que um ensaio que resulte de pesquisa, análise cartográfica e observação de marés por parte do aluno (que, no decorrer da pesquisa, pode até mergulhar, literalmente, no seu tópico de pesquisa)? Até mesmo o erro humano e os mal-entendidos criam espaços férteis para o surgimento de mais questões, de mais conhecimento e de mais transformação; já o algoritmo mais perfeito de todos, mecânico e sem erro, será infértil a este nível. 

Importa frisar que isto não é necessariamente um discurso anti-tecnologia. Na verdade, de um modo geral, encaro os algoritmos e a tecnologia como bom fruto da criatividade e do engenho humanos. O grande desafio passa pela forma como usamos estes algoritmos: são colocados ao serviço da “verdadeira humanidade”? Ou são fatores que contribuem para a “excarnação” que alastra no nosso tempo?

Interrogações Sobre a Universidade do Futuro

É difícil prever como é que as Universidades vão lidar com este desafio… No sentido clássico, a Universidade foi constituída como centro de estudo de tudo aquilo que diz respeito ao ser-se humano (daí a área das humanidades, do latim humanitas). Contudo, sob a pressão do Iluminismo, a Universidade sempre tendeu a sobrevalorizar a razão humana como se esta pudesse subsistir isolada das dimensões afetiva, espiritual e “encarnacional” das nossas vidas. O advento das IAs pode exacerbar ainda mais esta sobrevalorização, numa era em que há quem sonhe com a possibilidade de fazer o upload da mente para a cloud para vivermos finalmente desencarnados, imateriais, reduzidos a sequências de bits…  

Recentemente, Matthew Niermann, do movimento Lausanne, propôs uma lista de dez perguntas que vão moldar o nosso mundo até 2050. Entre elas está a pergunta “o que significa ser humano?” Também acredito que esta será a pergunta mais importante ao longo das próximas décadas. Ainda que não seja amplamente verbalizada, esta pergunta permanece como pano de fundo difuso da nossa sociedade contemporânea. 

Será que as nossas Universidades do amanhã vão ter coragem para encarar esta pergunta de frente? Será que as Universidades do amanhã vão ser espaços propícios à livre troca de ideias a respeito do ser-se humano e de tudo o que lhe é inerente? Espaços encarnacionais, com rosto, mãos e gestos? Espaços adequados ao conhecimento da verdade (e até da Verdade!) no meio do drama e dos relacionamentos humanos?

Conclusão – o “Como” da Missão na Universidade

O tempo irá responder a estas questões. Entretanto, independentemente dessas respostas, tu podes contribuir para que esta visão da Universidade se torne um bocadinho mais real abraçando o desafio encarnacional de estar plenamente “lá”, na Universidade, tal como o Alfredo Abreu realçou na sua palestra final do Fórum Nacional de Formação (referindo-se a este desafio também como a nossa “vocação sacerdotal”). Numa sociedade demasiado permeada pela virtualidade e pela “excarnação”, o “como” da missão cristã obedece a uma lógica oposta, a lógica da encarnação, que, tal como John Stott ensinou, decorre da versão da Grande Comissão que encontramos em João 20:21: “assim como o Pai me enviou, eu vos envio a vós.”

Esta lógica da encarnação é abraçada e vivida ao aceitares as contingências da tua presença na Universidade, experimentando-a como um espaço encarnacional, onde importam tanto as ideias como os rostos, as mãos, os gestos. Esta lógica é igualmente abraçada e vivida ao participares ativamente no processo de aprendizagem na sala de aula, ao interagires ao vivo e a cores com os teus professores e colegas, ao pesquisares e escreveres os teus ensaios académicos com esforço, dor de cabeça e calos nos dedos. Bem sei que um sistema de IA não padece destas maleitas, mas, se te serve de consolo, esse sistema também não abraça nem pode ser abraçado e, por muitos factos que conheça, não pode conhecer a Verdade. 

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