Natal: Um mundo de pernas para o ar – Manuel Rainho
A história por detrás das celebrações natalícias é uma das mais improváveis que podemos escutar. Nada é ali expectável nem encaixa na nossa perceção do mundo. O Salvador, o Messias esperado pelos judeus, nasce de forma desconcertante nas narrativas existentes, os chamados Evangelhos de Mateus e Lucas, duas fontes distintas e independentes. Nelas encontramos pormenores que parecem não encaixar no grande momento que pretendem relatar e anunciar.
Este Salvador que libertaria o povo dos seus pecados (Mateus 1:21), nasce fora de Jerusalém, centro político, ideológico e cultural de então, distante dos holofotes e das estruturas de poder. Essa honra caberia a uma pequena aldeia chamada Belém (Mateus 2:1; Lucas 2:6) que, apesar de já ter sido palco de anterior nascimento de um importante rei – o famoso David – era rotulada pelos próprios profetas judeus de “pequena entre os milhares de Judá” (Miquéias 5:2) .
O próprio nascimento acontece em condições deploráveis, mesmo levando em consideração as condições existentes naquele tempo: um parto realizado no lugar onde o gado dormia e defecava, assim como uma manjedoura improvisada como berço (Lucas 2:7). Não se pode sequer falar aqui de nascimento humilde ou modesto, mas algo bem abaixo disso.
Se é verdade que, segundo o Evangelho de Mateus, vieram adorá-lo uns certos sábios, que não eram reis, vindos do Oriente (Mateus 2:11), o Evangelho de Lucas destaca o grande sinal nos céus, um excelso coro de anjos cantando e anunciando o nascimento do Salvador, mas cujas únicas testemunhas foram uns simples pastores no exercício do seu trabalho noturno e no isolamento do campo (Lucas 2:8-20). Não podiam haver testemunhas mais humildes do maior espetáculo nos céus alguma vez registado.
Parece aqui haver uma inversão da básica ordem societal , um mundo de pernas para o ar. Maria ter-se-á apercebido disso ainda quando estava grávida de Jesus e espantada por essa honra concedida, proferindo uma oração cantada: “[Deus] Derrubou os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes. Encheu de bens os que têm fome e mandou embora os ricos de mãos vazias.” (Lucas 1:52-53)
Mas o extraordinário desta história, não termina por aqui. Pelo contrário. Inserida no contexto completo dos Evangelhos onde ocorre, apercebemo-nos que este Jesus de quem se descreve o nascimento é nem mais nem menos do que Deus em pessoa. Todos os Evangelhos, sem exceção, descrevem Jesus fazendo e dizendo aquilo que só a Deus pertencia segundo o judaísmo. E aqui a inversão do “estado natural das coisas” é ainda mais radical, pelo simples facto de não corresponder à imagem que temos do divino. Os pormenores da história natalícia passam a ganhar ainda mais contraste vistos à luz deste evento de proporções cósmicas: a encarnação de Deus na natureza humana, o transcendente a fazer-se imanente, o intocável a deixar-se cobrir de panos em total vulnerabilidade. Ficamos simultaneamente perturbados e maravilhados ao encarar Deus como um bebé, dependente dos cuidados diretos de Maria e José. Maria, mãe pela primeira vez (Lucas 2:7), tateando este novo ofício nas inseguranças naturais da sua falta de experiência e juventude. José, que segundo a fé cristã era somente pai adotivo , vemo-lo entregar ao seu “filho” aquilo que lhe seria mais difícil: um pai terreno que aceita as suas responsabilidades, apesar de ter apenas como base desta decisão a confiança na conceção virginal de Jesus, algo que não lhe deve ter surgido naturalmente, considerando a cultura de então marcada pela honra e vergonha (Mateus 1:20-21).
Ao longo de toda a história que deu origem ao Natal vemos abdicação, sacrifício, aceitação de uma realidade desconfortável em prol de algo que não o seu próprio ego. Vemos isso por parte de todos os intervenientes, inclusive e principalmente o próprio Deus que, nas palavras do apóstolo Paulo, “privou-se do que era seu e tomou a condição de servo” (Filipenses 2:7). Esta é uma história cada vez mais estranha aos ouvidos da nossa cultura. Por essa razão, ficamos maravilhados com o Natal e sentimos que há algo de profundo a acontecer aqui, algo que nos convida a tentar extrair o melhor que há no ser humano, uma última tentativa na versão melhorada de nós próprios em cada interação desta quadra festiva. Mas quando olhamos para os pormenores e para a história maior na qual o Natal está inserido, ficamos desconcertados e, por vezes, incomodados, pelo confronto que faz aos nossos desejos e projetos de vida mesquinhos, centrados em nós próprios, cujos valores obedecem a outras escalas e categorias que não aquelas que Jesus nos apresenta, mesmo enquanto bebé. O Natal é o convite deste Deus que se torna homem, abdicando de si, para lhe entregarmos os nossos próprios atos quotidianos, planos e desejos em prol daquilo que nos é maior e que merece o nosso sacrifício, ou seja, o nosso próximo ou semelhante. Que esta decisão de colocar o nosso mundo interior de pernas para o ar, possa ser uma realidade diária em cada sala, em cada cantina, em cada corredor percorrido na Universidade e fora dela.
Feliz Natal!
Manuel Rainho
Secretário-Geral GBUP