Quem somos nós?

Excertos do livro Dissonâncias: ensaios em bossa menor, da autoria de Emily Lange, um projeto que a autora desenvolveu inicialmente em paralelo com um projeto musical “Noite da Fé”. Este livro está em processo de edição e produção pelo Grupo Bíblico Universitário; estará disponível em breve.

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O projeto “Noite da Fé” resultou num álbum do mesmo nome e deu origem à banda Finito e mais além. Mas tudo começou em longas noites da fé. Foi “às cordas de uma guitarra”, sem saber para onde me virar, que procurei dar voz à minha aflição. O objetivo inicial era simplesmente o desabafo e a catarse. Funcionou. (…)

Olhando para trás, é difícil perceber como é que este projeto ganhou pernas e saiu para a rua. Pareciam divinos os fios que colocaram a obra em marcha. (…) Houve pelo menos dois momentos-chave. Um deles foi a leitura refrescante que o Eugene Peterson faz dos salmos bíblicos, descrita também no pequeno documentário com o Bono Vox. Tal como ao Bono, os salmos de lamento saltavam-me das páginas e redescobri que a Bíblia não esconde a noite das suas personagens. Alguns destes salmos serviram de inspiração e mostraram que o espaço para o lamento tem de ser talhado, defendido e promovido.

Outro momento de viragem foi fruto de uma formação no Panamá, na altura em que trabalhava para o Grupo Bíblico Universitário (GBU) como assessora. Apesar da formação ser excelente, pessoalmente foi um desastre. Ainda não sei bem o que aconteceu, mas a meio do mês entrei numa crise profunda; vários assuntos internos decidiram saltar todos para fora da tampa, ali do outro lado do nosso Atlântico, longe de família e amigos, rodeada de latinos exuberantes. Sentia-me desoladamente dissonante.

Lembro-me que estávamos a estudar o texto em que o profeta Jonas, de tão desgostoso e frustrado com a vida, se vira para Deus e diz, “Portanto, Senhor, tira-me a vida! Antes quero morrer do que viver assim!” Sentindo isto como nunca antes, arremessei a mesma frase a Deus. Jonas encostou-se a uma árvore, eu deitei-me num banco e fiquei a olhar para o céu. Passei os dias seguintes deprimida. Voltei a compor lamentações para libertar frustração. Quando cheguei a Portugal, estava de rastos.

O tempo no Panamá foi confuso e demorou muito tempo para processar, mas de alguma forma senti que de lá trouxera uma canção, e que esta não devia ser calada. Percebi, também, com maior profundidade a necessidade de praticar mais “teologia da debilidade”, a partir da partilha e da vulnerabilidade. Esta foi a segunda dimensão importante a concluir: a criação de espaços de lamento apenas podem sair do próprio lamento. É vestida de fragilidade que partilho em vulnerabilidade. Não pode ser apenas quando tudo está resolvido. É do meio da tempestade, é do escuro da noite. (…)

Quem somos nós? A questão é profunda e gigante. Podemos achá-la demasiado abstrata para o nosso dia-a-dia banal, mas, na verdade, respondemo-la todos os dias. A nossa identidade é o cockpit a partir do qual vivemos a nossa vida. Se não somos nós a defini-la, há quem a defina por nós. (…) 

A minha reflexão sobre esta questão foi desencadeada por crises pessoais de identidade. Não era apenas uma questão filosófica, mas despoletada porque não me sentia bem na minha própria pele. Não gostava de mim. E quem era este «mim»? Seria eu o problema, a razão do meu desconforto? Seria possível mudar ou era uma questão de me “descobrir”? As narrativas em meu torno diziam que era simples, podia escolher quem quisesse ser. Mas isso não é assim tão simples. A responsabilidade é enorme. O peso da decisão esmagador. Como podia eu, pessoa insegura de quem era, decidir quem ser? (…)

Cada cultura [impõe] sobre os seus membros uma certa identidade. E para isso, não pede permissão a ninguém, nem explica o que está a fazer, simplesmente fá-lo. Neste sentido, quem vive numa determinada cultura é como um peixe na água. O peixe não costuma questionar porque está na água, ou se a água é o único ambiente onde a vida é possível. Visto assim, não é de admirar que este assunto seja difícil. Completamente imersos na nossa cultura, tendemos a fazer o que o peixe faz melhor: nada.

Fui encontrando várias outras pessoas a passar por crises de identidade. Afinal, parecia um mal geral. Que estranha sociedade a nossa. Damos toda a aparência de autoconfiança e de ter a certeza do que fazer na vida; até incutimos esta ideia uns nos outros: “o que precisas de fazer é isto”, “o que tu precisas é aquilo”; “tens de ser assim”, ou até, “tens de deixar de ser assim”. Mas debaixo desta camada de vinil, fui-me apercebendo de uma insegurança identitária geral. Parecia mais comum encontrar alguém inseguro de si — quer esteja ciente disto, quer seja capaz de admiti-lo ou não — do que alguém em paz consigo próprio. (…) 

Para explicar melhor as narrativas desta nossa cultura moderna, [o pastor e teólogo Tim] Keller realça o seu contraste com a cultura tradicional. Enquanto os antigos definiam como bem último algo externo — seja Deus, sejam virtudes — o homem moderno internalizou o bem último. Antes, o autossacrifício era enaltecido, agora não sacrificamos nada a ninguém (apenas os outros, se tiver de ser). Do sentido de dever tradicional o homem moderno passou a colocar os desejos acima de tudo. A cultura moderna não tem obrigações (ou vai-se livrando delas) e quer afirmar os seus desejos acima de qualquer reivindicação que possam fazer sobre nós. Antes, o homem antigo buscava em algo externo o bem e depois chegava ao seu próprio coração e dizia, olha, isto é a verdade, agora acredita nisto — assim, argumentava consigo próprio. O homem moderno caminha diretamente para o seu interior, define ele próprio o que é o bem e depois vai ter com os outros e tenta convencê-los disto. Na identidade tradicional, o homem não se valida a si próprio. Valida-se pelo seu comportamento (que deve corresponder aos valores prezados naquela sociedade) e perante a sua comunidade. O homem moderno valida-se a si próprio e ninguém tem nada a ver com isso. (…)

Por um lado, é muito incoerente — se os nossos desejos estão sempre a mudar, como basear-me neles para decidir quem sou? Assim, torna-se numa identidade vulnerável e frágil, porque nós somos o nosso próprio validador. No entanto, nós somos seres profundamente relacionais; não é suposto fazermos carreiras a solo (…)  Aliás, parece que mesmo querendo ser donos de nós e independentes, andamos sempre à procura da validação no outro. Assim, esta identidade pode ser esmagadora. Quero a validação do outro, mas não posso ir buscá-la — ou, pelo menos, não aparentemente; e se a identidade tradicional era sobre “encaixar” na sociedade, a moderna é sobre o “sair da caixa”, o destaque, o ser diferente. Queremos ser aceites, mas nunca iguais. Nunca podemos relaxar, se não é sinal de que estamos a ficar ultrapassados, desinteressantes… demodé. Isto traz um peso esmagador aos relacionamentos amorosos e desvirtua as amizades. Agora, a identidade pessoal e o sexo são as coisas mais importantes, mais importantes do que a própria união, do que a amizade, do que a família. Neste panorama, a sociedade fica fragmentada: cada um está a criar a sua própria identidade, a sua própria ilha. Pior do que isso, a forma como esta identidade é afirmada é sempre com base na diferença, de nos sentirmos superiores aos outros. Conquistada pela performance, tenho de ser melhor do que o outro e assim é uma identidade que tende à exclusão. (…) 

A conquista da identidade é, provavelmente, a questão central do problema. Prova quem és, diria a cultura tradicional. Decide quem és, diria o homem moderno. Ambos acham que a identidade é algo que se adquire, enquanto Tim Keller nos lembra o princípio bíblico de que a identidade do cristão é recebida. Se tanto o homem tradicional como o moderno se apoiam na sua própria performance, a identidade do cristão baseia-se na performance de outro — Jesus Cristo, ou seja, na vinda, morte, e ressurreição do Filho de Deus. A identidade cristã coloca-se à parte da identidade tradicional e da identidade moderna: é a única que não é conquistada — só pode ser recebida. (…) 

Cristo é por onde começamos. Cristo é a nossa casa da partida, e constatar que Jesus Cristo é a realidade é essencial. No meio da minha confusão, finalmente tenho uma referência na qual me basear. A cultura moderna que tanto quer apontar caminho não sabe nem é a realidade; a cultura tradicional acha que tem o monopólio sobre a real forma de ser e estar; aquilo que eu sinto normalmente não é a realidade completa; o pecado certamente não é a realidade derradeira. Preciso de começar por admitir que em questões de identidade, estou num planeta escuro e não posso ser a minha própria luz. Novamente, vejo a minha história cosida nas entrelinhas da história da humanidade quando acolho a vinda de Cristo ao meu planeta escuro, pois era dele que já há dois milénios se dizia que “o povo que estava em trevas viu uma grande luz.” (…)

Há uma dimensão muito relacional na resposta à pergunta da nossa identidade. Se Cristo é por onde começamos para “nos encontrarmos”, a primeira coisa a notar é que ele se apresentou como filho de Deus, falando abertamente do seu Pai. Eu sei que não sou apenas o que faço, mas devo aprender que quem eu sou tem tudo a ver com quem pertenço. Se estranhamos a verdade de que pertencemos a Deus, entranhá-la custa e demora o seu tempo.

Nota: sobre Tim Keller e identidade, ver, por exemplo, este e este artigos.

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